Montgomery foi o epicentro do
movimento pelos direitos cívicos. Foi aqui que Rosa Parks recusou ceder o lugar
a um homem branco num autocarro, num gesto que contaminou uma irreversível cadeia
de acontecimentos. Iniciou o boicote dos autocarros pelos passageiros
afroamericanos, do qual emergiu a liderança de um jovem pastor baptista, Martin
Luther King. Já não havia volta atrás. Anos mais tarde, a marcha pelo direito ao
voto (consagrado, mas tornado quase impossível pelo processo de registo),
começaria em Selma para acabar em Montgomery. Outros acontecimentos teriam
lugar perto, em Mobile, em Birmingham.
Orgulho, pensei. Cedo demais.
Morreram pessoas, lembra-me quem me acolheu. E eu sabia. Montgomery tem má
fama, insistiu. Fui largando a minha excitação pateta à medida que tropeçava
nas pedras. Culpa e vergonha.
E aquele dia em que parámos numa
venda de garagem.
Peguei num taco de baseball
velho, medi-lhe o peso, imitei o gesto. O dono da venda de garagem
aproximou-se, pegou no taco, disse meia dúzia de coisas, de que só entendi
“blacks”, uma palavra que quase nunca ouvi aqui, apesar de haver outra pior. A
linguagem corporal do homem, a forma como ele pegou no taco, os olhos aflitos
das pessoas que me acompanhavam e, num minuto, estávamos fora dali. Sem
entender tudo, eu tinha percebido. Antes de perguntar para ter a certeza, os
pedidos de desculpa multiplicaram-se. Foi tão constrangedor para as pessoas que
me acompanhavam que só dias depois consegui perguntar o que o homem tinha dito.
Que se fossem os negros, pegariam
no taco de outra maneira, foi o que ele disse, mimando o gesto de quem vai partir
alguma coisa.
Partir alguma coisa. Ou bater em
alguém, que foi o que vi fazer aquele homem alto, rosado, de chapéu caqui, com
o neto de dois anos aos pés. Desejo estar enganada.
No Civil Rights Memorial um enorme pendão: “The march continues”. Lá dentro,
encontramo-nos com quem se comprometeu com o caminho, abdicando de segurança e
conforto, o diretor da revista do Southern Poverty Law Center. A instituição
começou por se concentrar em processos legais, mas nos últimos 15 anos investiu
na revista, uma publicação única, que junta o que normalmente, e bem, vai
separado: ativismo e jornalismo. Usando as ferramentas do jornalismo de
investigação, fazem a monitorização dos grupos de ódio e terrorismo doméstico
nos Estados Unidos, organizações xenófobas e racistas (também de ‘supremacia
negra’), anti-gay, alimentadas por teorias da conspiração e pelo ‘lobby’ das armas.
O objetivo não é só saber quem eles são e onde estão, mas, muito claramente,
destruí-los com armas de papel. Um artigo revelando que os pais de um
determinado ‘líder’ anti-semita são judeus pode aniquilar uma completa
organização, por exemplo.
A publicação é quadrimestral e
gratuita, para não fazer concorrência à imprensa tradicional, que recebe
frequentemente informação privilegiada, exclusivos, notícias em primeira mão. A
segurança para entrar no edifício é apertada, um milhão de dólares anuais para
proteger um alvo. Trabalham na revista 15 pessoas que nunca aparecem em
público, com exceção dos diretores. Não são idealistas panfletários. São
jornalistas, incluindo um antigo repórter do New York Times com um Pulitzer em
casa.
O Southern Poverty Law Center
trabalha também na educação para a tolerância. Estão na prevenção e combate ao
bullying contra alunos gays, latinos, afroamericanos, estudantes com
deficiência. A “Teaching for Tolerance” edita uma revista, guias de boas
práticas, material didático de grande qualidade para professores e alunos. E
promove coisas tão simples como um dia em que em cantinas escolares de todo o
país os alunos se sentam ao lado de alguém que não conhecem, um colega com quem
nunca falaram.
The march continues.